quarta-feira, 10 de outubro de 2012

Capítulo V




          Todos estavam com aquele friozinho na barriga. Ramirez apresenta os três jesuítas ao capitão Venâncio Escobar, que os recebe em seu navio com um largo e caloroso sorriso, acompanhado de boas vindas. Paco fica ao cais recepcionando a sua irmã mais velha juntamente com sua sobrinha Mercedes, que parecem também visivelmente emocionadas, só se acalmando com a chegada dos amigos de seu filho que lhes encorajaram bastante, dizendo inclusive, que esta viagem fará muito bem ao Ramirez, que ao voltar trará a decisão de sua vida na cabeça; inclusive pensar em se casar e dar a ela o neto que ela tanto deseja. Isso, todavia, a fez sorrir por instantes e acabou dizendo:

         - Pensando bem, é bom mesmo que esse menino fique um pouco longe da gente para poder dar mais valor as coisas que tem.  Nem bem terminou já ouvira uma calorosa salva de palmas dos amigos de seu filho.

            A ida dos amigos do Ramirez até o cais do porto fora muito bem planejado por ele, uma vez   pressentindo qual seria a reação de sua mãe  ao saber da arriscada trama. Agora mais tranquilo debruçado na borda lateral do navio, ele contemplava tudo o que se passava lá em baixo e se deliciava com tudo o que estava ocorrendo. Ao cruzar o olhar com o seu tio Paco, faz um sinal com o polegar direito, o que foi correspondido imediatamente por ele. Paco não arreda um instante os pés do lado da irmã prevendo qualquer incidente de última hora. Recebe também as companhias do seu contratador e do seu porta-voz que também se acham emocionados pela contribuição dada aos arranjos finais.

          -Missão cumprida chefe! Agora é por conta deles. Disseram uníssonos os seus empregados.

         -Vocês foram primorosos nos preparativos. Só posso externar os meus sinceros agradecimentos.

         -O senhor não tem nada que agradecer, muito pelo contrário, nós que o temos pela confiança depositada até aqui em nosso trabalho. Redarguiram.

         Nesse instante o capitão Escobar vem o mais próximo possível de Paco e faz um gesto com a mão direita aberta como saudação e resoluto dá voz de comando a todos seus marinheiros para içarem as velas. Com extraordinária perícia os marujos fazem o barco rapidamente dar meia volta e se posicionar rumo ao seu destino. Todos retiram seus lenços e começam a balançá-los freneticamente como forma de despedida. D. Almerinda não contém as suas emoções e chora copiosamente nos braços do seu irmão caçula.

         -Senhor Ramirez, quero lhe mostrar os seus aposentos. Por favor, venha comigo. Os seus amigos já estão acomodados. O navio não é  tão espaçoso, mas há  lugar para todos.

         -Desculpe-me capitão, estava aqui pensando que até perdi a noção do tempo!
         Notei isso senhor Ramirez. O senhor devia estar viajando para bem longe mesmo. É natural, mormente nesse estado em que se encontra agora, ter que deixar coisas tão importantes para trás, as quais por tanto tempo nos acompanham e que são parte da nossa vida.

         - Embora não se tenha muito que lamentar capitão Escobar, minha vida até aqui não tem se constituído de grandes emoções tal como eu desejaria. Talvez nesse périplo oceano a fora, eu encontre os componentes que façam vibrar as minhas estruturas emocionais tão comumente em desuso.

         -O mar, senhor Ramirez, nos propicia oportunidades para a reflexão, cabe a cada um  corrigir ou não atitudes e conceitos tão arraigados dentro de nós até então.

         - Capitão Escobar, minha vida com a exceção das rotineiras idas e vindas nos negócios do meu tio, tem sido de uma rotina sem precedente.

         -Como já lhe disse senhor Ramirez o mar vai lhe trazer todos os ingredientes que necessita para uma renovação. Pode esperar.

         - Este é o seu aposento. Eu mesmo o escolhi por ser mais próximo aos seus amigos. Diz o capitão.

         -Muito confortável capitão, obrigado! Dá para avistar o oceano em toda a sua extensão até onde alcançam, é claro, as retinas dos nossos olhos.

         - Fico satisfeito em ter gostado. Quero lhe comunicar também que daqui a duas horas realizaremos a nossa primeira reunião para troca de ideias e informações e nos conhecermos melhor. O senhor Garcia, a pedido meu, também se fará presente. Quero que o conheçam e façam amizades.

         - Acho excelente a ideia de nos reunirmos logo!      

         - É bom saber que também pense assim. Agora se me der licença deixá-lo-ei à vontade. Até mais senhor Ramirez.

         - Até mais tarde capitão Escobar.

         Pe. Juan em companhia dos seus dois colegas preferiu ser servir do almoço junto aos negros no porão. Queriam desde já iniciar o trabalho de reconhecimento e selar amizade. Conhecer suas origens, sua cultura, religião e em que situação foram trazidos para a Espanha. Tinham, todavia, plena convicção que esse trabalho não surtiria resultado da noite para o dia, mas sentiram neles reciprocidade no início – já era um bom começo.

         Eles continuavam sendo bem tratados, não lhes faltava nada, a pesar da intentona no cais do porto. Encontravam-se até bastante descontraídos, a ponto de rirem pra valer das brincadeiras do Pe.  Francisco. As brincadeiras chegaram a contaminar uma parte da tripulação que se encontrava por ali a serviço, e os ecos de seus risos chegavam até a sala do capitão que não sabia precisar de onde vinham. Isso é bom para a moral da tripulação, dizia Garcia, corroborado pelo capitão Escobar que não se fazendo de rogado também se apressou em descer ao porão.
         - O capitão Escobar já lhe avisou que daqui a pouco nós nos reuniremos em sua sala? Perguntou Pe. Juan a Ramirez.

          - Com certeza!

         - Acho que aí vêm mudança pelo caminho – arriscou o padre.
         - Como assim? Perguntou Ramirez.

         -Bem, no momento são ilações, só vamos saber mesmo na reunião. Respondeu Pe. Juan.

         -Existem vários caminhos para se chegar ao destino traçado, e pelo que eu sei estamos navegando por caminho convencional, é só o senhor dar uma olhada aqui no mapa – pelo menos por enquanto...

         - Pelo que estou vendo Ramirez, você já conhece bem os detalhes dos mapa hein?

         -Foram sete dias de aulas contínuas. Teoricamente aprendi, só falta à prática agora. Com efeito, garanto-lhe Pe. Juan que não ficarei muito pelos meus aposentos e sim contemplando diuturnamente o oceano em sua latitude e longitude, debruçado nesta prancheta.

         - Você parece que incorporou inteiramente o espírito da missão. Isso só lhe fará bem com certeza, pois não obstante ampliar seus conhecimentos, enriquecendo sua cultura, lhe trará mais maturidade ao seu espírito e desviará por certo um pouco seus pensamentos de Madri.

         - Quanto ao último item da sua observação não me preocupa nem um pouco, padre. Puxei pelo meu pobre pai. Infelizmente ele se tornara um homem infeliz nos últimos tempos. O casamento lhe tolheu todos os seus impulsos, seus sonhos de aventura, embora sempre escondesse isso de todos. Não queria magoar minha mãe, embora a amasse muito, trazia no sangue o estigma do homem aventureiro – de procurar a todo custo desafios que lhe completassem  sua existência. Isso só se acentuou mais quando seus filhos já estavam moços e não precisavam mais dele. Nesse vácuo seu espírito aventureiro não esmorecia, mas aí já era tarde de mais, a idade já lhe consumia as energias.  Eu fui seu confessor na hora de sua morte. Esse detalhe me marcou profundamente. Isso me fez rever alguns planos de última hora, como por exemplo, desfazer um namoro que tenderia inapelavelmente ao casamento. Não iria suportar a desilusão que o meu pai suportou sofrendo sozinho e calado.

         - Engraçado Ramirez, sempre estive com o seu pai, mesmo na mesa de xadrez, onde tínhamos tempo suficiente para divagar, mas em instante algum ele demonstrou esse seu lado incontido.

         - Meu pai era um homem muito discreto com as coisas íntimas que lhe diziam respeito. Eu só havia tomado conhecimento desses fatos na hora de sua morte, quando então me confessara, fazendo-me prometer não contar nada a minha mãe.
         - Ele foi muito responsável e nobre ao  resistir em prol da família todo os impulsos do seu espírito. Faço as minhas reverências a ele. Disse Pe. Juan.

         - Estive ontem em seu mausoléu sozinho. Demorei–me desta vez o mais que das outras – por duas horas ou mais, chegando até a perder a noção do tempo. Conversamos muito sobre tudo isso, senti os eflúvios seguidos de uma paz imensa em minha alma, como se ele estivesse me dando todo o apoio nas últimas decisões que tomei, e me abençoando nessa minha viagem, entende padre!

         - Perfeitamente.  Seu espírito não suportaria vê-lo passar pelas mesmas agruras passadas por ele.

        - Foi isso exatamente que eu senti padre. Não me arrependo em nada no que fiz. Agora sinto-me livre dos grilhões do convencionalismo impositivo que me prendiam até então.

          - É bem melhor assim. Esta expedição estava marcada em seu destino. A empreitada demanda que estejamos seguros e cheios de energias positivas para suportá-la.

         - Fico feliz em saber disso Pe. Juan! Quanto a mim, farei tudo o que estiver ao alcance para não decepcioná-los.

         -Antes tinha comigo que esse seu propósito em assumir o comando da expedição, não passasse de uma vaidade pessoal ou impulso momentâneo que logo se desvaneceria com o passar dos dias de solidão aqui no interior deste navio. Com efeito, nos traria sérios problemas, deixando à deriva nosso projeto. Depois do altíssimo investimento feito pelo seu tio, pelo qual tenho o maior apreço, não seria nada agradável.

         -Meu espírito intrépido de emoções, não via à hora da chegada de uma oportunidade como esta – queria, entretanto, que me encontrasse já despojado das amarras de quaisquer compromissos. E Isso tudo veio a calhar com as medidas drásticas por mim tomadas anteriormente.

         - Você quer dizer no rompimento do noivado?

         - Não só essa, mas  outras também, Pe. Juan.

         - De qualquer forma fico mais aliviado e mais seguro, com a certeza que você encarnou inteiramente o espírito da jornada, porque queira ou não, você é o chefe da empreitada – é o nosso comandante mor, e nada melhor é saber que este comando encontra-se em mãos firmes e cabeça no lugar. Agora se me der licença vou continuar pondo as coisas em ordens lá em meus aposentos.

         Faltavam poucos minutos para o início da reunião. Tudo reinava na mais absoluta calma, até o mar desdenhoso cooperava com o cenário - com suas ondas batendo leve no casco do navio. Não havia sinal de mau tempo; o céu se revestia de nuvens brancas como a neve, que muito lentamente se movimentavam. O vento sul soprava como uma brisa refrescante nas faces dos tripulantes, tendo o sol quase a se recolher no horizonte. As aves marinhas revoavam sibilantes em busca de alimentos. Do navio já pouca coisas se via da terra, o resto era só mar bordado de um azul turquesa.

          A disposição de ânimo já ensaiava seus primeiros acordes no comportamento da marujada. Já dava para perceber a alegria no semblante de cada um deles. O mar era-lhes suas vidas, seus sangues correndo nas veias. Cinquenta e três dias até a ilha de Sambaqui, ah! Pra eles era uma espécie de êxtases.

         Um comissário foi enviado aos aposentos de cada um para convocá-los a mando do capitão Escobar que se encontrava já em seu escritório, pronto para iniciar a reunião. Decididos todos rumaram para lá. Após os cumprimentos de praxe, o capitão Escobar apresenta-lhes o seu braço direito, imediato Garcia, um homenzarrão de 90 quilos bem distribuídos em seus um e oitenta e cinco de altura. Dentes escurecidos pelo tabaco, barba espessa e um brinco na orelha esquerda. Cabelos a altura dos ombros, lenço cobrindo a testa inteira com as pontas amarradas atrás da cabeça. Moreno claro, corpo atlético; nos seus vinte e nove aventureiros anos, nada o intimidava. Lépido como um preá, e calado como um túmulo. Perspicaz e talentoso, enormes olhos azuis lhe completavam a aparência. Após o reconhecimento de cada um, passou a escutar com atenção o seu capitão.

         - Reuni os senhores aqui, primeiro para desejar-lhes uma feliz estadia em meu navio, e se alguma coisa os incomodar, por favor, exijo dos senhores que me tragam  os seus reclames para que eu possa sanar no mais curto tempo possível. Segundo, como é do conhecimento dos senhores, estamos atravessando neste exato momento os Açores, este aglomerado de ilhas de possessões portuguesas. Mais lá na frente está São Miguel a maior delas, que em sentido paralelo a oeste, se avista a Ilha da Madeira. Portanto, estamos exatamente dentro dos limites dos mares de Portugal. Pois bem, se dobrarmos aqui neste ponto para o sentido sul, permaneceria encostado às possessões, e estaríamos sendo mais vigiados ainda, sujeito a vistoria no navio. Isso faz parte do tratado entre o nosso país e o deles. Todavia, se decidirmos mudar a rota, ou seja, irmos mais em frente, latitude oeste, nos aproximando mais de Hamilton, nas Bermudas.

          Ficaríamos no centro do Atlântico e por conseguinte, longe o bastante da sua vigilância, não obstante estarmos ainda navegando em suas águas. Nossa intenção depois de ouvirmos os senhores é decidir pela melhor opção. Lembrando que o centro do oceano nos oferece mais perigo com ondas acima de três metros e outros riscos a mais. Porém, só navegaremos dentro desse perímetro umas 400 milhas, depois retornaremos mais a costa a partir das Ilhas Virgens americanas e britânicas. Como já disse o meu navio é de grande porte, suportará esse açodamento oceânico causados pelo vento mais forte naquela região, mas o pessoal que viaja no porão sentirá muito com a mudança abrupta do comportamento marítimo. É o risco que se pode correr. Por isso, quero ouvir um por um dos senhores.

                  - Capitão Escobar, sendo essa é a rota mais calma por que alterá-la? Arguiu o Pe. Arnaldo.
                   - Normalmente Pe. Arnaldo, esse é o caminho mais utilizado por todos nós navegadores, entretanto se os senhores observarem da janela, verão uma quantidade enorme de navios de bandeira portuguesa rondando a sua costa marítima, coisa incomum nessa época do ano. Como disse normalmente a zona sempre está livre, desimpedida. Ademais, fui informado pelos comandantes dos navios da nossa frota que acabavam de atracar no cais, que muitos dos nossos navios foram detidos para averiguações. Alguém mais quer fazer alguma pergunta?

         - Diante desses argumentos insofismáveis, a minha opção é pela variante. Nós estamos lotados de mantimentos, ferramentas e de escravos no porão.  Isso com toda a certeza suscitaria desconfiança, chamaria a atenção dos portugueses, criando por consequência até um impasse, pois teríamos que explicar esse fato e isso seria um risco temível. Atrasaria toda viagem e inviabilizaria nossa missão. Argumenta Ramirez.

         - Estou com o capitão Escobar! É muito arriscada a primeira opção, está certo que é mais calmo, mas não deixa de ser perigoso para os nossos planos. Diz Pe. Juan.

         Os demais também acabaram concordando com o capitão Venâncio Escobar. Prontamente o imediato se levanta e sentencia:

         - Desta forma eu vou passar agora mesmo o novo plano ao timoneiro, e pedindo licença se retirou da sala.

         - Fico contente por ter reinado nessa sala o espírito da sensatez e da concórdia comumente manifesto nos senhores. Agora mais aliviado manifesta-se o capitão.

         - Agora a parte mais difícil caberá aos padres que deverão descer ao porão e preparar os negros para algumas horas de suplícios se por ventura tiverem que passar. Manifesta-se Ramirez.

         - É o que pretendemos fazer. Se não tiver mais nada de relevante a ser tratado gostaria de me dirigir ao porão. Responde Juan.

         -Não padre, pelo menos de minha parte. A não ser que alguns dos cavalheiros tenham mais alguma coisa a acrescentar.

         Como ninguém quisesse mais se manifestar, o capitão Escobar deu por encerrada a reunião, mas deixou-os em sobreaviso para quaisquer novidades que por ventura viesse a ocorrer no transcurso da viagem.

Sinta o clima...

Madri-Espanha
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